“Ser mulher, escrever e viver no Brasil são atos de resistência diária”. Entrevista com a escritora Renata Belmonte

Renata Belmonte lançou o seu primeiro romance "Mundos de uma noite só" no dia 13 de março deste ano, pouco antes de o Estado de São Paulo entrar, oficialmente, em quarentena.

“Uma despedida sobre a vida como ela era", recorda a escritora, que mesmo num ano marcado pelas incertezas e desafios trazidos pela pandemia sente que os leitores “estão fazendo [o seu livro] acontecer”.

Em entrevista ao myClappy, Renata Belmonte fala sobre o seu romance de estreia, o seu "compromisso radical como artista" e os desafios de uma mulher escritora que vive e (resiste) no Brasil, num momento em que livros voltaram a ser queimados publicamente.

Mãe de duas filhas, a escritora de 38 anos nasceu em Salvador e mora há 12 anos em São Paulo. É amante das “histórias” e das “palavras”, mesmo antes de se descobrir advogada: “trabalho com o Direito”, mas “nunca houve alternativa”: “sou uma escritora”.

Antes de "Mundos de uma noite só", publicou três contos - dois deles premiados: “Femininamente” (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), “O que não pode ser” (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e “Vestígios da Senhorita B” (2009).

Renata Belmonte descreve a sua “honestidade literária” como “absoluta e brutal”. Uma escritora que abre a escuta “a todo o tipo de gente” e consente o próprio “fracasso” como um ato de fé na literatura contemporânea.

O que significa dizer que a Renata é uma escritora que “não faz concessões”? É a sua obra que não faz, ou a própria Renata em si?

Quando o [escritor] Luiz Ruffato me definiu deste modo, no texto de orelha do “Mundos de uma noite só”, também fiquei impactada com tais palavras. Porque estar vivo, em qualquer tempo, significa saber se colocar em movimento e transigir com os elementos que nos cercam. Assim, num mundo marcado pela intolerância, creio ser uma imensa virtude a capacidade de transformação de si mesmo, a partir de trocas com o outro. Mas isto não significa que devemos renunciar ao nosso núcleo fundamental, ao que nos faz únicos.

Eu escrevo a partir daquilo que meus personagens me pedem, eu os respeito, os compreendo como matéria pulsante. E como acredito que as histórias se contam sozinhas, penso que o meu papel é, justamente, saber traduzir o que o próprio texto tem para me dizer. Parece-me, então, que quando o Ruffato fala que eu não faço concessões, ele se refere ao meu compromisso radical como artista, a este meu exercício de liberdade estética, à minha honestidade literária absoluta e brutal, algo que se percebe, ao longo da leitura do Mundos.

Primeiro: três livros de contos publicados (dois deles premiados), em seguida: um romance que chega às livrarias em plena situação pandêmica. Além disso, uma vasta formação em Direito. O que a motivou a embarcar no universo da literatura?

Reconheço-me uma escritora, ainda antes de ser capaz de decalcar as primeiras letras. E comecei a me preparar para uma vida devotada às histórias, desde muito pequena. Isto se confunde com quem acredito que sou, nunca houve alternativa. Considero-me uma “exploradora da existência”, como bem definiu Milan Kundera. Costumo estar aberta para a escuta de todo tipo de gente, penso que a diversidade enriquece a minha experiência como pessoa e não acredito que alguém possa ser um bom escritor sem um conhecimento profundo da alma humana. Não sou juíza dos meus personagens, tampouco defensora deles, mas apenas alguém em diálogo, buscando receber aquilo que eles desejam me entregar.

O Direito chegou na minha vida, já bem mais tarde, como uma escolha, um meio para viabilizar minha sobrevivência (o que inclui, inclusive, o luxo da escrita livre). E preciso ressaltar que, ao contrário do que se pode pensar, não vejo antagonismos entre as minhas atividades.

Hoje em dia, inclusive, transito muito bem entre estes dois mundos porque resolvi apostar num olhar de complementaridade entre eles. Atuar como advogada me ajuda a sair de zonas de conforto, sou convidada a ser mais objetiva, a pensar com a cabeça do outro, a conviver com estruturas e métricas muito distintas das minhas. Pode-se tirar muito disto, basta que se seja capaz de construir seu próprio santuário interno e que se saiba, com alguma exatidão, quem você é e até onde suporta o seu desejo.

Como se dá no seu dia-a-dia essa fusão entre a Literatura e o Direito?

Há um trecho, em Grandes Sertões Veredas: “Eu era dois, diversos? O que eu não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia”. Permaneço sem controle destes processos, a Literatura e o Direito se impõem, cada um no seu tempo, de acordo com suas próprias circunstâncias.

Em poucas palavras, como você descreveria o universo de “Mundos de uma noite só”?

“Mundos de uma noite só” é um livro em que o leitor precisa, assim como sua protagonista, consentir se perder para ser capaz de, quando no final da leitura, se encontrar. Ele é um mergulho profundo naquilo que temos em comum na nossa humanidade compartilhada, é um passeio pela memória que se revela falha e incapaz de dar conta de nossa própria vivência. Os personagens são ambíguos, apaixonantes, vivos. Foi um imenso prazer fazer parte de tudo isto.

Por quê você decidiu dar vida a esta história? Que simbologia traz o colar/relicário que vemos plasmado na capa?

O prólogo do Mundos se apresentou inteiro, apenas precisei me sentar e colocá-lo no papel. A sua voz narrativa se impunha, desde o princípio. Então somente fiz o que foi preciso, segui o fluxo, pois este livro não nasceu de modo organizado ou racional. Sua capa foi produzida pela Raquel Matsushita, grande artista e escritora, que captou com perfeição seu espírito.

Afinal, quantos não ditos carregamos porque os tememos e não somos capazes de chamá-los pelos seus próprios nomes? Sabemos mesmo quem são, de verdade, aqueles que mais amamos? O que são retratos, senão lembranças estáticas daquilo que projetamos ser?

Quais têm sido os principais temas, tormentos, estranhezas que podemos encontrar nos seus textos?

No Mundos, busquei construir um romance de formação do feminino, a partir de acontecimentos públicos e privados, assim como também tentei descortinar as estruturas que moldam as existências ditas “marginais”.

Nunca é simples bancar o preço de ser quem se é, estando ou não no centro, afinal, pouco sabemos sobre de onde viemos e para onde iremos, depois destes corpos. Então, podemos dizer que o Mundos é também um livro sobre fé, sobre nosso próprio mistério constitutivo, sobre a estranheza elementar que é se descobrir vivo.

Quais têm sidos os principais desafios para quem escreve, é mulher e vive no Brasil? E como atravessar estes tempos sombrios em que livros são queimados?

Somos descendentes da linhagem das bruxas e sabemos que, quando desafiamos a ordem patriarcal, sempre existirão os que tentarão encontrar modos de calar nossa voz, silenciar nossos corpos. Ser mulher, escrever e viver no Brasil são atos de resistência diária, bravura, na medida em que você continua desafiando o poder instituído, apenas ao sair na rua, apenas ao ousar dizer quem é.

Vivemos em tempos de violência oficial, institucional, mesmo que, em alguns casos, ela se revele apenas no plano simbólico. E aqueles que queimam os livros são os mesmos que temem descobrir sua própria falibilidade, vivem a barbárie já em si, pois não suportam a impotência humana, a incapacidade de controlar o tempo, a morte. Pobre ilha, pobres habitantes. Se engana quem acredita ser capaz de impedir a transmissão do legado da liberdade para as futuras gerações, pois, apesar do fantasma do medo, a vida sempre se providencia.

Para o futuro, quais são os projetos pensados? Mais contos, mais romances, poesia?

Um romance. E o desejo da típica da poesia de estar viva.

Há uma frase da autora francesa Anaïs Nin muito pertinente àqueles que escrevem: “Escrevemos para provar a vida duas vezes, no momento e no seu retrospecto”. Poderíamos dizer que tal se aplica à Renata?

Há algo que preciso confessar: em muitos momentos definitivos da minha vida, fiquei paralisada, incapaz de dar conta daquilo que estava sentindo, quase como se as minhas emoções e palavras faltassem. Creio então que a escrita, no meu caso, significa a oportunidade de tomar a minha própria existência de modo completo, uma chance de estatuir, presentificar o passado, suportar aquilo que eu mesma não soube dizer, ser, no instante preciso.

O livro "Mundos de uma noite só", escrito por Renata Belmonte e editado pela Faria e Silva, pode ser adquirido aqui.

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